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Brasileiro restaura voluntariamente fachadas em Lisboa

Fábio Carvalho, carioca, artista plástico que desde 2011 tem tido a sorte de viajar anualmente a trabalho para Portugal, para exposições e residências artísticas, já realizou 7 residências, 2 intervenções urbanas e 10 exposições.

Ele contou para o nosso site "JEITINHO" BRASILEURO! todos os detalhes deste trabalho de intervenção urbana que realizou voluntariamente, restaurando com azulejos de papel, fachadas de edifícios em Lisboa que tiveram os azulejos originais furtados ou deteriorados pela falta de conservação. Confira a entrevista:

"JEITINHO" BRASILEURO! : Por que te despertou o interesse em realizar essas intervenções em Portugal?


FÁBIO CARVALHO: Há alguns anos uso em meu trabalho padrões decorativos de louça de mesa. Então eu já não estava tão longe da cerâmica. Em 2009, participei por vários meses como voluntário de um projeto de arqueologia com fragmentos de azulejos do século XIX oriundos de escavações no Rio de Janeiro. Durante este trabalho tivemos um curso intensivo com a professora Dora Monteiro de Alcântara, a maior especialista em azulejos antigos no Brasil. Aí certamente surgiu o embrião do meu interesse pela azulejaria antiga.

Em 2011 estive em Portugal para minha primeira residência artística no país (Bordallianos do Brasil), e foi quando me tornei um apaixonado pela cultura portuguesa em geral, e pela cerâmica e azulejos antigos em particular, tendo até iniciado naquele ano um projeto de levantamento dos azulejos antigos aqui no Rio de Janeiro. Foi nesta primeira viagem a Portugal que comecei uma enorme coleção de fotos de fachadas e de pormenores de azulejaria em Portugal. Uma parte significativa desta coleção são fotos de “remendos” em fachadas onde as pessoas usaram azulejos diferentes dos padrões originais, que mesmo não sendo o ideal, cria em alguns casos umas colchas de retalhos fantásticas!

Quando cheguei este ano (2015) em Lisboa, para mais esta residência artística, não tinha qualquer projeto pré elaborado, apenas o desejo de repetir algo nos moldes do que havia feito ano passado, com a intervenção urbana Migração Monarca. Mas logo nos primeiros dias, quando fazia mais fotos de azulejos e remendos, para a minha coleção, me ocorreu que poderia tentar algo com isso. Por estes dias eu estava fazendo também pesquisa de material em retrosarias para uma nova peça da série “Delicado Desejo” que são armas de fogo feitas com rendas, e resolvi juntar as duas coisas, criar um padrão de azulejos a partir das fotos destas armas de rendas.

Depois de quase 3 semanas, imerso no processo da intervenção urbana "Aposto", me dei conta que já em 2011 havia pensando um projeto de arte para Lisboa baseado em azulejos. Não era para o espaço público externo, mas sim para a cave de uma instituição cultural, projeto este que não aconteceu. Já eram azulejos de papel, temporários, descartáveis. Em 2013 fui convidado junto a mais 9 artistas de vários países para um outro projeto que envolveria criar um painel de azulejos reais, cerâmicos, que seria instalado em caráter permanente em uma fachada de algum imóvel devoluto de Lisboa, projeto que não foi em frente por falta de financiamento. Estes projetos, mesmo que não concretizados, certamente deixaram suas marcas em mim.

"JEITINHO" BRASILEURO! : Como você se relaciona com o seu trabalho?

FÁBIO CARVALHO: Os azulejos são um excelente exemplo de convívio e fusão de dois “mundos” que são a base de todo o meu trabalho artístico desde 2009: os estereótipos do mundo masculino, da força, poder, virilidade, e o universo aceito como feminino, do delicado, frágil, decorativo. Meu trabalho joga sempre com esta dualidade e com os elementos condicionantes de identidade de gênero. Os azulejos são um produto da manufatura, da indústria, do mundo empresarial e comercial complexo, que tradicionalmente são vistos como do território masculino, da força, do poder, da economia, mas que na verdade são peças de uso ornamental, muitas vezes trazem flores, volutas, firulas, cores, e os ornamentos são tradicionalmente encarados como sendo do universo feminino, do terreno do delicado. Mas ao ornamentar, indicam maior ou menor riqueza do proprietário, valorizam o imóvel, que é um bem patrimonial, que historicamente é algo masculino; o legado de uma família sempre foi preferencialmente transmitido ao primeiro filho homem. Este tipo de dualidade informa meu trabalho.

Quando penso uma intervenção urbana, acho fundamental orientar o trabalho a partir de aspectos culturais do local que a vai receber, e ao mesmo tempo mesclar os próprios projetos a estes aspectos culturais que os informam e guiam. Por exemplo as fachadas azulejares e as ornamentações das festas dos santos populares.

"JEITINHO" BRASILEURO! : Você já fez intervenção urbana em outros países?

FÁBIO CARVALHO: Além de Portugal fiz apenas uma intervenção urbana no Brasil em 2002, quando fui convidado a participar da residência artística Horizontes Transitórios / Paisagens Alteradas, promovida pela Prefeitura da cidade de Sobral (Ceará - Brasil). O meu projeto, batizado de “Sobral: Cidade Fóssil”, surgiu ao perceber que os órgãos oficiais de Sobral falavam da cidade no presente, mas com uma enorme nostalgia de um período em que Sobral foi a capital do Ceará, muito mais rica e politicamente importante. Parecia que a cidade havia parado no tempo há 50 anos e nada mais de relevante acontecera desde então. Isso me deu a sensação de estar lendo sobre uma cidade que não existia mais no presente, parecia um relato arqueológico de uma cidade que ficou para trás, ou mesmo um fóssil.

A primeira intervenção urbana que fiz em Lisboa, ano passado (Migração Monarca, 2014), aconteceu em paralelo a uma exposição que fiz no Rio de Janeiro, para a qual originalmente criei bandeirinhas de papel de seda com os meus soldados “Monarcas” impressos com carimbos que eu mesmo criei. A ideia de fazer bandeirinhas veio por esta exposição acontecer em junho, mês das nossas “festas juninas” que correspondem às festas dos santos populares em Lisboa, e as bandeirinhas de papel de seda colorido são a decoração mais característica das nossas festas juninas.

Então daí foi um passo natural levar as minhas bandeirinhas para Lisboa, para misturá-las na decoração da festa dos santos populares, pois eu iria passar exatamente o mês de junho em Portugal, numa residência artística na Cerâmica São Bernardo, em Alcobaça. O nome, “Migração Monarca”, tem a ver com isso, a transposição de algo que nasceu no Rio de Janeiro e “voa” até Lisboa, como as borboletas monarcas, que são as únicas borboletas migratórias, que nascem no norte da África e migram até o Algarve, e justamente no início do verão, como eu estava para fazer. 2014 foi o ano em que se comemorou 40 anos do 25 de abril (soldados com asas vermelhas!); o tema das festas foi a "Peregrinação", livro de Fernão Mendes Pinto, que completou 400 anos da sua publicação. Tudo parecia conspirar a meu favor!


"JEITINHO" BRASILEURO! : Recebeu algum incentivo financeiro do governo português? Quem financia o seu projeto?

FÁBIO CARVALHO: Este projeto foi integralmente custeado por mim mesmo. Todas as despesas foram pagas do meu próprio bolso. Foi um projeto 100% independente, e gosto que tenha sido assim, pois isto me deu total liberdade, por não ter qualquer compromisso com nenhum órgão público ou empresa privada, o que pode ser ótimo pois te dá conforto financeiro, e te permite projetos mais grandiosos, mas por outro lado te impõe quase sempre uma série de restrições.

"JEITINHO" BRASILEURO! : O que você espera com esse trabalho? Encontrou dificuldades em realizá-lo?

FÁBIO CARVALHO: Não sei se espero algo objetivamente concreto com meu trabalho. Não havia um plano neste sentido quando comecei o projeto. Se as intervenções de alguma forma despertarem um olhar renovado para a azulejaria de fachada, sua originalidade e beleza, ou talvez se por alguns segundos parar as pessoas que eventualmente fiquem intrigadas com aqueles invasores nas fachadas, e com isto quebrar brevemente com o automatismo que costumamos viver, ou quem sabe fizerem as pessoas prestarem atenção para que se está perdendo um patrimônio que no caso de Portugal é um elemento de identidade nacional, já terá sido bom. Um trabalho de arte deve provocar dúvidas, levantar questões, quebrar certezas, e jamais apontar respostas. Estas cabem a cada um de nós.

Não tive maiores dificuldades para realizá-lo, felizmente! Apenas talvez um pouco de desconforto com o frio, pois a maior parte das intervenções foi feita de madrugada, e um certo receio de que pudessem considerar o que eu fazia vandalismo. Passava na minha cabeça a imagem da minha deportação, prisão, multa, tudo! Eu fiz o projeto sem pedir qualquer tipo de permissão, justamente pois queria que fosse algo que surgisse nas paredes sem nenhum tipo de aviso prévio, que fosse algo que pegasse as pessoas de surpresa.

"JEITINHO" BRASILEURO! : Um paralelo entre Brasil e Portugal sobre o vandalismo que ocorre nas ruas das grandes capitais (pichação, furto de azulejos...):

FÁBIO CARVALHO: Não é muito diferente não, mas acho que aqui no Brasil a pichação propriamente dita (não falo do grafite, que é uma outra história, e que não considero vandalismo, muito pelo contrário!) é muito mais intensa e frequente, está por todas os lados, em qualquer lugar. Em Portugal reparei que a pichação ocorre mais em locais degradados, e muito raramente em zonas mais bem conservadas.

As fachadas azulejares com lacunas, algumas enormes, muitas vezes em péssimo estado, algo que me entristece demais, são a face explícita de dois problemas muito sérios: a falta de conservação dos imóveis antigos, o descaso como patrimônio histórico, e o furto de azulejos para venda em feiras e antiquários, ambos problemas que também acontece no Brasil em todas as cidades que possuem fachadas azulejadas, como Rio de Janeiro, Salvador, Belém, São Luís, etc. Este mês mesmo uma livraria tradicional no centro do Rio de Janeiro amanheceu sem sua conhecida fachada de azulejos de figura avulsa portugueses do século XIX. Neste caso, parece que foram removidos pelo próprio proprietário, pois a loja está em obras. O que foi feito dos azulejos ninguém sabe.


"JEITINHO" BRASILEURO! : Alguma sugestão para melhorar a conservação das fachadas e/ou coibir esse tipo de vandalismo?

FÁBIO CARVALHO: Há tantos órgãos em Lisboa que em teoria cuidam disso, com tanta gente a estudar e pensar o problema, mas que mesmo assim não dão conta do recado, que seria até arrogância minha tentar dizer como se deve lidar com o problema, que é extremamente complexo, e que naturalmente se agrava em períodos de crise e aumento de pobreza e busca a todo custo de meios de sobrevivência. De toda forma, acho que educação e sensibilização da população para a importância da preservação deste patrimônio nunca são demais, principalmente para as novas gerações. Outra coisa que me causa espanto é a quantidade de azulejos que são facilmente e explicitamente encontrados à venda em feiras de usados de rua e antiquários, sem qualquer certificado de origem — como é que pode?!?!

"JEITINHO" BRASILEURO! : Você acha que o grafite de rua tem harmonia com o trabalho que você desenvolve?

FÁBIO CARVALHO: Eu penso que são coisas bem distintas. Adoro os grafites, mas estes tendem a ter uma escala monumental, enquanto minhas intervenções são algo mais discreto e que se integram de forma quase parasítica ao seu entorno, que silenciosamente invade e se agrega ao seu “hospedeiro”, e cria uma relação com o que já estava lá antes.

No caso específico da intervenção urbana "Aposto", usei pouco mais de 300 azulejos de papel em 45 pontos de intervenção. Isso não é muita coisa! Cada situação tem um resultado diferente, independente da escala da intervenção – algumas vezes os azulejos de papel causam um certo estranhamento ao olhar, quando há mais contraste entre azulejo de papel e azulejo cerâmico original, em outras podem ser facilmente confundidos com os azulejos originais, mesmo que estejam em grande número. Por acaso a intervenção com mais azulejos de papel numa mesma parede é a que mais “desaparece”, a que mais se camufla na fachada.

De toda forma, mesmo nos casos onde usei muitos azulejos de papel, a escala final da intervenção é relativamente pequena, se pensarmos no que é tradicionalmente entendido como arte urbana: paredes inteiras de vários andares de altura, muros de muitos metros de extensão, ou esculturas monumentais. Meu interesse é outro. Os projetos que realizei até hoje foram sempre de uma escala discreta; são peças pequenas, infiltradas. Não são obras que cobrem e ocupam de forma incisiva e chamativa um espaço e uma superfície. São peças que exigem uma aproximação, uma intimidade, para que possam agir. Ficam dormentes até que você as ative com seu olhar. Não gritam - sussurram.

"JEITINHO" BRASILEURO! : Onde podemos encontrar as suas intervenções urbanas em Lisboa?

FÁBIO CARVALHO: A maioria das intervenções aconteceu em Penha de França e Anjos, pois eu estava hospedado nesta região, mas há muitos também na Graça, e mais alguns pelo Bairro Alto, Baixa, São Cristóvão e Madalena.



Para o projeto foram criados padrões no total, de forma a tentar integrar da melhor forma possível os azulejos de papel com os azulejos originais das fachadas.

Os azulejos de papel foram aplicados com cola de amido em fachadas de prédios onde os azulejos originais estavam em falta, por deterioração ou furto. Nenhum dos azulejos originais foi coberto por azulejos de papel

Para saber mais sobre o projeto "Aposto" e outras intervenções urbanas de Fábio Carvalho, clique aqui

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